“A tortura do sono foi ainda pior no tempo de Marcelo Caetano”

 

 

 

 

Irene Pimentel

Irene Flunser Pimentel, historiadora, especialista no estudo do aparelho repressivo do tempo da ditadura,  diz que em 1965 um preso político às mãos da PIDE, Álvaro Veiga de Oliveira, esteve 15 dias sem dormir. Mas o pior período da tortura do sono pela PIDE foi no tempo de Marcelo Caetano, quando se ultrapassaram os 15 dias de privação do sono, acompanhados de espancamentos selvagens. Talvez porque o regime estava no fim e “muito acossado” refere a historiadora.

 No PREC, em 1975, os políticos tiveram muitas noites sem sono. Parece que Vasco Gonçalves fazia uns períodos de descanso numa sala ao lado em S. Bento, no  meio de Conselhos de Ministros mais demorados…

As fontes documentais revelam de facto que os principais intervenientes pouco dormiam no PREC.  Um dos mais “assediados” era Otelo Saraiva de Carvalho, em particular quando esteve no COPCON. Todos recorriam aos  seus serviços para arranjar uma casa, para ouvir denúncias, para que actuasse de uma ou outra forma. Penso que o facto de os políticos dormirem pouco neste período teve repercussões sobre as decisões tomadas. 

 No cerco da Assembleia Constituinte, em 1975 houve quem não pregasse olho. Mas também quem dormisse razoavelmente face às circunstâncias…

Esse cerco à Assembleia Constituinte teve deputados “bons” e deputados “maus”. Estes últimos não puderam sair  durante a noite e poucos dormiram. Só mesmo os que tinham melhor dormir e o faziam em qualquer situação.

Mas os deputados da bancada do PCP saíram do Parlamento e foram dormir para casa. O mínimo  que se pode dizer é que estes revelaram total falta de solidariedade com os seus colegas e agradeceram aos sitiantes. Quanto ao primeiro- ministro da altura, o Almirante Pinheiro de Azevedo, parece que se “chateou” muito com a situação.

A PIDE usava a tortura do sono. Em que consistia? Que efeitos teve em muitas vítimas?

A PIDE usou como principal tortura a do “sono”, que consistia em não deixar um preso dormir durante vários dias e noites. Para o impedir elementos da PIDE revezavam-se de quatro em quatro horas, para fazer barulho, batendo com uma moeda na mesa, obrigando o preso a andar… Houve um preso político, Álvaro Veiga de Oliveira, que esteve sem dormir durante 15 dias e 15 noites, em 1965.

Curiosamente, ou talvez não, dado que o regime ditatorial estava então muito acossado, o pior período foi o do chamado “marcelismo”, em que foram frequentes períodos de 15 ou mais dias de privação do sono, acompanhados de espancamentos selvagens.

O preso político sujeito à tortura do “sono”, ficava muito deprimido, sem vontade, com dores de cabeça e no corpo. Depois surgiam as alterações sensoriais, em particular sonoras, e as célebres alucinações. Quase sempre viam animais repelentes nas paredes e no chão ou pensavam que as paredes se moviam. Como perdiam a consciência eram acordados com barulhos, baldes de água ou espancamentos. A prazo, muitos ex-presos sujeitos a essa violência descrevem incapacidade de dormir, fortes dores de cabeça e problemas psicológicos.

Um célebre manual da CIA, dos anos 60, preconizava como “meio de interrogatório” a privação do sono , proibição de contactos (isolamento) e de movimentos, a chamada tortura da estátua também utilizada pela PIDE.  Sabe-se que a partir de 1957 a PIDE aprendeu com a CIA mas penso que esta também terá aprendido com os métodos da polícia política portuguesa.

Como era o sono de Salazar? Parece que tinha muitos surtos depressivos…

Sinceramente, nunca me preocupei muito em conhecer a sua vida mais privada e por isso não posso responder à pergunta mas tinha de factos surtos depressivos, deslocando-se quase sempre então para Santa Comba Dão. Em determinados momentos ficava rouco e chegou mesmo a perder completamente a voz, não por ter falado demais, mas em situações complicadas, ao sentir-se acossado. Penso que eram situações psicossomáticas.

É conhecida a história de Mário Soares nas eleições  presidenciais de 1986, no dia do debate televisivo com Freitas do Amaral, quando dormiu uma sesta revigorante  em vez de preparar os dossiers como queriam os seus conselheiros …. Há mais exemplos que conheça no mundo político, em virtude da sua investigação histórica, em que o sono tenha tido tão bons resultados? 

Mário Soares é um excelente exemplo de quem defende e pratica a sesta, e penso, com grande benefício. Conta-se que numa ocasião em que recebeu, enquanto Presidente da República, uma delegação protocolar de chineses, estes entraram na sala e o serviço de protocolo disse-lhes que a audiência duraria meia hora. Ao fim de meia hora, uma hora… o protocolo resolveu abrir a porta, pois ninguém saía e depararam com Mário Soares a dormir e os elementos da delegação chinesa em silêncio e na expectativa.  Possivelmente terão pensado que se tratava de um protocolo português …

Não conheço mais situações do género no mundo político. Já noutro campo, no caso dos repórteres de guerra, conheço uma jornalista portuguesa a quem perguntei como aguentava essas situações. Respondeu-me que pensava resistir pelo facto de dormir em qualquer situação.  Por exemplo, no Haiti, na sequência do terramoto em 2010, havia muitas réplicas e os seus colegas jornalistas tinham medo de dormir. Mas ela dormiu sempre bem.

Pensa que os boletins de saúde dos políticos em lugares cimeiros deviam ser divulgados?

É uma questão complicada! Sou completamente a favor da preservação da vida privada, seja de quem for. No entanto, na medida em que os  políticos têm de tomar decisões que não se compadecem com situações de doença  e até para os preservar de rumores, falsos ou não, penso que os seus boletins de saúde deviam ser divulgados.

Lembro-me dos chefes de Estado norte-americano e soviético, no período da guerra-fria (em que se falava que podiam carregar no botão da bomba atómica) e também hoje, de qualquer político, que por decisão própria pode declarar uma guerra…

Digo isto com a consciência de que tal poderá dissuadir pessoas de relevo de enveredarem pela carreira política.

O que pensa da expressão Deus não dorme?

Sou ateia e por isso não tomo a expressão na sua forma literal que quer dizer que façamos o que façamos a consequência virá, sendo mesmo um apelo à vingança ou ao castigo.

Na verdade, não gosto da expressão e considero-a errada porque Deus está feito à imagem do ser humano e não convém nada que não durma.

Mas também é preciso ver que “o Deus não dorme” tem aqui uma conotação positiva. Por exemplo, perante o Holocausto muitos judeus consideraram que Deus estaria de facto a dormir para permitir que tal crime ocorresse e afastaram-se de Deus.

Acontece-lhe acordar a meio da noite com uma ideia? Costuma registá-la?

As melhores ideias tenho-as a caminhar ou quando estou quase a adormecer ou logo ao acordar.  A meio da noite é menos frequente, mas já aconteceu. Infelizmente tenho “preguiça” de a registar e viro-me para o outro lado e continuo a dormir. No dia seguinte, arrependo-me pois já não me lembro de tudo.

Já houve situações na sua vida em que o sono foi bom conselheiro? Em que medida a ajudou? 

Houve muitas situações em que o sono foi bom conselheiro. Depois de dormir vem frequentemente a solução que não vislumbrava e esta torna-se simples, quando antes era complicada. Rio-me e penso: “valeu bem a pena”

Adormece facilmente? Já teve insónias? É mais “coruja” ou “cotovia”? 

Adormeço facilmente, sem qualquer indutor, mas se tiver uma situação complicada para resolver posso ter uma insónia. Quando tal acontece, o que é raro, forço-me a dormir com um relaxante, com bons resultados. Não sou “coruja” nem “cotovia”. Sou mais “bicho de preguiça”. Custa-me acordar.

Lembra-se de alguma história pessoal ou profissional divertida envolvendo o sono ou a falta dele?

Não me lembro de nenhuma história importante. A não ser que quando ando à procura em casa de algum objecto importante e  não o encontro tento relaxar e “passar pelas brasas”. Quando acordo já sei onde está. Há pouco tempo aconteceu-me isso com uma chave e quando acordei fui direitinha ao bolso do casaco onde ela estava.

 

Partilhar: