Gonçalo M. Tavares escreve sobre o sono no seu último livro “O Torcicologologista Excelência”. “Quando estou a adormecer, mesmo a meio caminho entre a vigília e o sono profundo, ali estou, com uma sensação de invulgar arrebatamento …”
“Antes de explicar a Vossa Excelência o que significa a frase NÃO TE ESQUEÇAS CROCODILO, que eu escrevi quando estava meio a dormir, deixe-me contar-lhe os resultados de uma experiência semelhante. Ali estou então eu, com um olho fechado e o outro meio fechado – a dormir a três quartos, portanto – e mesmo a metade de olho que está aberto já está a ver mais para dentro do que para fora, digamos assim… já estou a ver uma espécie de cinema interior, já estou a ver imagens que o cérebro emite e não imagens da realidade. Enfim… Pois estou então eu, já nesse estado de quase sono quando, de novo, essa sensação como de uma picada: descobri algo! Como não quero que essa brilhante descoberta seja perdida para sempre faço um esforço sobre-humano e, mesmo já deitado e mesmo já muito inclinado para o sono profundo, lá consigo mexer um braço, uns dedinhos e com esses restos de movimentos, digamos assim, lá escrevo a frase, uma frase-eureka, uma frase que sinto resumir uma enormíssima descoberta. Escrevo em pleno escuro e deixo-me cair, exausto, no sono.
– Bonito!
– Pois bem, no dia seguinte, acordo. E de imediato avanço com mãos e olhos ansiosos para o pedaço de papel na minha mesinha-de-cabeceira. E leio o que escrevi. E leio a minha descoberta extraordinária; a descoberta que fiz no quase-sono.
– Sim?
– E o que estava escrito… sabe Vossa Excelência o que era?
– Vossa Excelência diga, por favor. Estou ansioso!
– Pois bem, o que estava escrito era: NÃO TE ESQUEÇAS CROCODILO.
– De novo?
– Sim, de novo. Duas vezes. Não é impressionante?
– Bem, impressionante ou não, o facto é que…
– Bem, deixe-me dizer a Vossa Excelência que, na terceira noite, aconteceu o mesmo e repeti o procedimento. Estou a adormecer, sinto que… levanto-me, etc., etc.
– Muito bem.
– E sabe o que estava escrito, desta terceira vez?
– Não.
– NÃO TE ESQUEÇAS CROCODILO.
– Outra vez!?
– Sim, três vezes.
– Três!
– Mas houve uma quarta vez.
– Sim?
– E na quarta vez, sabe o que estava escrito?
– NÃO TE ESQUEÇAS CROCODILO.
– Não. Nada disso. NÃO TE ESQUEÇAS… CÃO PASTOR-ALEMÃO.
– CÃO PASTOR-ALEMÃO? Que estranho!
– Sim, eu também considerei estranho. Estava à espera do crocodilo.
– Mas, então, o que concluiu Vossa Excelência dessas quatro experiências?
– Pois bem, depois de várias experiências semelhantes e depois de muito reflectir, concluí que, apesar de tudo, é melhor pensar acordado do que a dormir. Apesar de tudo, repito.
– Uma conclusão sensata, eu diria”
in Gonçalo M. Tavares, O Torcicologologista Excelência, Editora Caminho